Por Mariana Teles: “Vamos ficar todas nuas”

08/03/2021 - 16:21 - Opinião

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Por Mariana Teles: “Vamos ficar todas nuas”

Por Mariana Teles: Vamos ficar todas nuas

 

Nunca me senti tão provocada a escrever sobre feminismo, sobre mulheres como nos últimos dias. Não é a data nem o simbolismo, é a necessidade atemporal de afirmar o óbvio. Na imensa maioria das vezes eu estava mais preocupada em garantir meu espaço de luta sem precisar invocar a condição de mulher. Sem perceber que o machismo que eu apontava nos homens, vestia saia e na maioria das vezes era exatamente o meu número. 


Possivelmente, se estivesse escrevendo esse texto meses atrás iria falar sobre os avanços da legislação na consolidação dos direitos da mulher, o número de casos de violência crescendo abruptamente durante a pandemia, as desigualdades do mercado de trabalho, as políticas públicas de proteção social, enfim o mesmo discurso simbólico de todo oito de março. Mas esse texto é sobre cultura. É sobre vivência. Talvez o que chamaríamos de ‘’lugar de fala’’. Um texto necessário que pediu para nascer, embora dolorido, como todo parto, como tudo que uma mulher dar à luz, tudo que ela traz ao mundo.


Maria da Penha, feminicídio, violência doméstica são os codinomes dados as repostas normativas na busca de corrigir uma deficiência histórica, cívica e moral. Respostas tímidas para um Brasil que assiste deputado assediar colega em plenário, que os partidos transformam a política de cotas em um grande laranjal de vestidos, que a violência de gênero não escolhe classe social, que o feminismo ainda é uma pauta associada aos movimentos de mulheres mostrando os seios ou queimando igrejas (como os fundamentalistas preferem associar), que aborto não é discussão de saúde pública e que o ministério que responde pelas políticas de inclusão só conseguiu dizer até agora que menina veste rosa e menino veste azul.


Mas esse texto não é sobre direito nem política somente. Não é escrito com a automação da caneta da advogada. É um texto de uma mulher que se reconhece machista e que precisou sentir por todos os poros o quanto a luta do feminismo também lhe pertence. 


Da mesma forma que essa discussão não deve padecer de sequestro ideológico por parte da fala feminina, o machismo também não é um item de exclusividade do armário masculino. Me sinto machista na maior parte do meu tempo. O processo de desconstrução é lento e talvez só prospere em outras gerações.


Nasci sertaneja, única filha de três irmãos, militei na política estudantil e na cultura popular durante a adolescência e herdei impressões e posturas que todas essas condições e escolhas me impuseram. De casa, aprendi que mundo é substantivo masculino e luta é verbo feminino. Subi em palcos reservados aos homens e quando lancei meu primeiro livro escutei que o que eu escrevia era tão bom, que nem parecia ser escrito por uma mulher. E ainda acharam que isso era um elogio. Me tornei advogada e mais uma vez a condição de mulher, nesse contexto agravada por ser sertaneja e com um sotaque arrastado, mais uma vez me colocou em porões de preconceitos que de tão naturalizados eu não sentia. Nos alimentamos do machismo velado que impuseram na nossa formação e queremos combater lá fora, sem antes desconstruir suas faces aqui dentro. E que são muitas.


Bati inúmeras vezes no peito para dizer que apesar de ler Simone de Beauvoir não me sentia feminista por não gostar do excessivo uso do termo para justificar essa ou aquela postura. Produto da criação, das condições de clima e temperatura de onde venho. E assim foi por muito tempo. Julguei a colega ao lado da minha cadeira na faculdade pelo tamanho da roupa, apontei a professora separada que paquerou um aluno, criei quase um vernáculo impublicável para batizar as mulheres que não se encaixavam dentro do que aprendi ser certo. E talvez, fosse uma delas com bem menos coragem. Mas repetia que não, não precisava do feminismo. Dizia que chegava onde estava chegando por um atributo que não escolhe sexo, a competência.


Quanto engano! Quanta babaquice! Precisei do feminismo desde a primeira discussão com um   irmão dentro de casa, quando levantei a voz na sala de aula, que recusei dançar com alguém numa festa, beijar no carnaval, quando assumi um relacionamento com um homem mais velho, quando escolhi uma saia mais curta, quando fiquei em rodas masculinas discutindo assuntos ditos masculinos, quando quis aprender a dirigir, quando viajei sozinha pela primeira vez, quando esperei sozinha o ônibus da faculdade, quando não conseguia dormir nas viagens de ônibus a noite com medo de um desconhecido sentar ao meu lado por horas ou naquela cantada insistente de um professor... Tantas vezes! Todos os dias! De todas as formas. Nessas horas pareço ouvir Pitty cantando que “ele estava ali o tempo todo, só você não viu.”


O machismo indolor começou a se transformar numa ferida pequena, gerada por comportamentos involuntários e sucessivos. Era ao mesmo tempo criadora e criatura, a amiga que apontava a outra por essa ou aquela postura, a que julgava a cor do batom, a que dizia que não confiava em ‘’fulaninha perto de fulaninho’’. Na condição de criatura, não adiantava um currículo extenso, o tamanho do decote era muito mais importante do que o do lattes. Quando criadora, apontava exatamente aquilo que mais combatiam em mim.


Lembrei que julgava a Marcela do Michel, a Ana Paula do Justus, a Michelle do Jair e a minha vizinha que desfilava grifes e grifes e ninguém sabia quem custeava.


Mas e aí, Mariana? E o processo de desconstrução? Você protestou nas ruas mostrando os seios com uma faixa levantada? Quando a obviedade do feminismo fez sentido nas suas lutas?


Feminismo não é somente seios de fora ou protestos. É garantir o direito de quem quiser protestar, protestar, quem não quiser, não ser obrigada. É sobre poder ser. Nunca tinha parado para pensar nos comportamentos que naturalizamos. Até que me deparo refletindo sobre poucas mulheres liderando o mercado financeiro, poucas mulheres nas atividades atribuídas aos homens (como as engenharias, por exemplo), um déficit representativo na política que reflete no debate da democracia, mortes, agressões. Eu não via onde essas mulheres estavam, mas sabia onde elas deveriam estar.


Somos maioria em número de advogadas e nunca elegemos uma mulher presidente do conselho federal da OAB. Em Pernambuco, temos apenas uma mulher desembargadora no Tribunal de Justiça e apenas uma no Congresso Nacional. Na Paraíba, em 223 municípios apenas 37 são governados por mulheres. No Piauí, com a mesma quantidade de cidades da Paraíba o número é ainda menor, nas eleições de 2020 apenas 28 mulheres foram eleitas para o executivo.


No último ano vivi intensamente os bastidores de uma campanha eleitoral – do jurídico ao estratégico – dos debates às agendas. Cidade conservadora por natureza, candidato declaradamente conservador, equipe de campanha majoritariamente masculina. Comecei a dormir e a acordar ressignificando o feminismo e a necessidade de visibilidade que o movimento precisa por conta própria, não foi assistindo as sufragistas na Netflix. Foi chegando em casa todas as noites com uma lição nova sobre tudo isso, ou melhor, uma ferida nova.


Lembro que um advogado que geralmente despachava comigo por telefone, sempre me tratando com muito zelo quando se reportava, frisando com respeito a minha condição de integrante da coordenação jurídica, na oportunidade que me conheceu pessoalmente passou dois minutos em silêncio e só conseguiu dizer: “é essa daí que é a Dra Mariana? Meu Deus, parece uma menininha”. Pois é! Experimenta ser jovem, mulher e de quebra, gostar do que faz e fazer bem feito. Os meses de campanha me fizeram viver todos os preconceitos de uma vez só. Se por um lado ser minoria me dava aquela sensação de que a minha cota de entrada não havia sido pelo gênero, por outro despertou uma feminista adormecida, ferida e irredenta. Ninguém tinha me dito que idade era RG de caráter, muito menos capacidade cognitiva nascia no sexo de ninguém. A vida esfregou na minha cara que quem mais precisa do feminismo é quem menos faz por ele.


Não foram poucos os dias que eu meu perguntei: “E se eu fosse homem?” Ouvi de um candidato já eleito, que ele não era machista, mas a sociedade era. E talvez o excesso cometido por uma mulher em determinado momento, fosse de álcool ou de gestos, seria mal interpretado e julgado. Decisivo, eu diria. Mas claro, por ele não! Pelos outros! Afinal, ele não era machista e jamais ‘’tiraria onda’’ com uma pauta tão cara aos olhos do politicamente correto. Ele não era machista! O mundo era. Ele é. O mundo também.


Ouvi e engoli seco uma outra sequência de absurdos. Vi mulheres e homens praticarem a vida inteira a mesmíssima postura, mas padecerem de imputações absurdamente diferentes.


É sobre essa luta silenciosa, invisível, travada todos os dias por milhares de mulheres que perdem oportunidades, que retroagem na carreira, que precisam escolher entre o sucesso doméstico ou o profissional. Sobre as que silenciam as agressões, as que viram estatísticas.


Maria engravidou adolescente e depois traiu o marido. Mas Maria não engravidou sozinha. Para trair se precisa de dois. Mas de quem é a culpa? De Maria. Todos bradamos iguais.


Gabriela é o melhor quadro técnico da empresa, mas não pode viajar para um congresso com outros executivos por que não fica bem viajar com muitos homens. Julia não será escolhida porque sua função não agrada aos olhos da esposa de fulano.


A gente naturaliza. Eu naturalizei. Só me dei conta que o feminismo também era sobre mim quando as minhas feridas se confundiam com as feridas de quem eu apontava. Quando na corrida da vida um homem passou na minha frente pelo simples fato de ser homem. Muitas vezes!


Sim! O machismo veste saia, usa scarpin e anda com batom na bolsa. Julga quem prefere cuidar da casa do que da carreira, aponta quem depende financeiramente do parceiro, duvida da jovem que ascende profissionalmente, negligencia as muitas mães solos, silencia as dores que não deixam hematomas externos.


O machismo é sistêmico, o feminismo ainda não. O machismo vive em homens e em mulheres, o feminismo em poucas mulheres. Somos um exército de muitos silêncios e muitas dores. E ainda não entendemos que se o machismo veste saia, por uma questão de pertencimento, só quem pode despir é quem usa.


É urgente desmascarar o discurso da hipocrisia do “eu não sou, o mundo é”. Todos somos, mas nem todos admitimos.


Enquanto a gente não entender que não há nada de errado em Patrícia, que quis casar e se tornar extensão do marido em sua plenitude, adorno da ribalta e decoração da mesa. Nem com Cecília que prefere preencher o passaporte e acumular premiações. Ou com Helena que não se sente atraída pela maternidade. Nem com nenhuma de nós. Não há nada de errado. O erro é obscurantismo da cultura, a falência de uma moral acéfala. Não haverá uma virada de página cultural na cidadania.


A legislação não reflete a cultura. E a urgência do primeiro e principal confronto é com as mulheres. Causas e causadoras. A saia do machismo é nossa. Vamos despir junto com ela a ressaca do patriarcado, a cultura das “mulheres legítimas”, dos que separam mulheres em dois grupos: para casar e para não casar. Vamos confrontar o que queremos mudar. E a mudança, nesse sentido, é de causa e consequência, é de criador e criatura.  


Aos homens caberá não suportar os ecos unidos, duplicados e essencialmente feministas de todas nós e, em algum momento aderir ao debate que é da cidadania. 


É hora de atribuir verdade à frase que diz que quando mulher se junta, homem sai de perto.


Somente confrontando o que somos é que mudamos. Somente rasgando as últimas páginas de um país que mata mulheres e não prende agressores é possível desnudar o machismo e vestir o feminismo com todas as cores que a luta nos impõe. Primeiro, a gente se reconhece como tal, depois a gente deixa de ser. O que não vale é a hipocrisia em dizer: “Eu não sou! O mundo é”. Pena que a hipocrisia não escolhe se veste saia ou calça, mas em muitos casos ler a bíblia, frequenta templos, discursa de um jeito e faz de outro. Olha mais a janela da vizinha do que a história da prima, da mãe, da irmã, da cunhada, etc.


É hora de ficarmos todas nuas. De machismo e de hipocrisia. 


Para que o dia oito de março nos cubra de consciência e seja regra em um calendário que marcará todos os dias como o dia da igualdade.


Mariana Teles | Advogada e poetisa